Considerada a mais influente intelectual tibetana, a escritora e poeta Tsering Woeser, 42, não sabe escrever em tibetano. Nos anos 1960 e 1970, o idioma foi proibido nas salas de aula pelo governo chinês. Foi assim que Woeser foi educada em mandarim. Por dominar a língua, Woeser começou a escrever em chinês livros, poemas e relatos que desafiam a versão chinesa de que o país "libertou" o Tibete. "Sou de uma geração que usa o chinês para atingir um público maior e contar nossa verdadeira história", diz ela na entrevista abaixo. Há pelo menos 300 blogueiros tibetanos desmentindo a versão de Pequim. Ela instalou seu blog em um servidor no exterior, depois de ter dois blogs bloqueados. Seus livros são proibidos na China e foram editados em Taiwan e em Hong Kong. Na obra "Memória Proibida, a Revolução Cultural no Tibete", Woeser publica 300 fotos feitas por sua família que mostram a destruição de mais de mil mosteiros budistas pelas tropas chinesas e as torturas infligidas contra monges entre 1966 e 1975. Seu blog Tibete Invisível (http://woeser.middle-way.net/) foi visitado por 3 milhões de internautas no ano passado, quando o noticiário sobre os protestos no Tibete foi controlado pela mídia estatal chinesa. Dois de seus livros foram traduzidos para o inglês. Woeser conversou com a Folha usando Skype, pois policiais vigiam a entrada do edifício em que vive com o marido -o também escritor e dissidente Wang Lixiong- e ela teme receber lá a visita de jornalistas estrangeiros.
Leia trechos da entrevista.
FOLHA - A propaganda chinesa diz que os tibetanos agradecem por terem sido libertados de um regime escravocrata pela China. A sra. Acha que a maioria dos chineses não tem ideia da repressão que houve por lá?
TSERING WOESER - A maioria dos chineses acredita na versão oficial. Eu mesma aprendi na escola que o Tibete foi liberado pelo exército comunista. Nos ensinavam que o dalai-lama era o demônio em pessoa e ensinam isso até hoje. A história do Tibete foi reescrita, distorcida, como se tivéssemos que agradecer à China por nos ocupar. Mao dizia que queria livrar o Tibete dos colonialistas exploradores. Mas em Lhasa só havia dez estrangeiros em 1950.
FOLHA - O Tibete era uma teocracia muito pobre, onde ainda havia servos em 1949. Os dissidentes não exageram na visão romântica do Tibete pré-comunismo?
WOESER - O Tibete não era um paraíso, não era perfeito, antes da invasão chinesa. Era pobre, muito pobre, uma região despovoada no alto do Himalaia. A China também era pobre. Sim, havia atraso, como em muitas outras partes em 1949. Hoje, 60 anos depois, o Tibete continua pobre.
FOLHA - Seu pai foi oficial do Exército de Libertação do Povo. Como lidou com essa história em casa?
WOESER - Na faculdade, quando estudei literatura chinesa, li "In Exile from the Land of the Snows" (No Exílio da Terra das Neves), de John Avedon, que descreve como a China tomou o Tibete e como o dalai-lama fugiu para a Índia. Eu o dei para meu pai ler, que disse que "70% do livro era verdade". Meu tio, que também foi do Exército chinês, disse que 90% era verdade. Vi que o que aprendi era mentira.
FOLHA - O Tibete passou de um autoritarismo a outro?
WOESER - Sim, o Tibete nunca foi uma democracia, passamos de uma teocracia para o regime comunista chinês. Mas nós somos budistas, acreditamos na harmonia budista, então o povo era mais feliz. Ninguém nos perguntou se queríamos ser "libertados" pelos chineses. Não éramos esse regime atrasado que os chineses pintam. Fomos um dos primeiros países a abolir a pena de morte.
FOLHA - O dalai-lama já disse que aceita a soberania chinesa, mas pede mais autonomia ao Tibete. A sra. Acha possível que isso aconteça algum dia?
WOESER - Não é possível que o Tibete consiga sua independência, e não sou otimista a ponto de achar que algum dia o dalai-lama possa voltar a viver em Lhasa, mesmo o regime chinês continuando. O problema só se solucionaria quando acabasse a ditadura comunista, o que não acontecerá tão cedo.
FOLHA - Gerentes de hotéis precisam avisar a polícia quando um tibetano tenta se registrar em grandes cidades chinesas. Após os protestos do ano passado, ficou mais difícil para os tibetanos se deslocarem?
WOESER - Sim, o medo de que eles organizem protestos é tão grande que os tibetanos são interrogados antes de poder fazer o check-in em um hotel. Há militares em cada canto do Tibete, a população vive vigiada. Acho que os protestos do ano passado já são uma resposta sobre se os tibetanos estão felizes com a China...
FOLHA - O governo lhe explica por que não pode obter passaporte?
WOESER - Acho que o governo chinês tem medo de que o critiquemos lá fora. Eles sabem que um tibetano no exterior correria para a Índia para tentar ver o dalai-lama. É o fracasso da política de desmoralização contra o dalai; não conseguiram acabar com nosso amor por ele. Somos cidadãos de segunda classe, temos ainda menos liberdade do que o chinês comum. Meus livros são proibidos. Não tenho passaporte e não pude viajar para receber prêmios literários. Tenho amigos tibetanos, cidadãos comuns, nada ativistas, que também não podem tirar passaporte.
FOLHA - O budismo foi muito perseguido durante a Revolução Cultural, sob Mao Tse-tung. Hoje a prática religiosa é mais liberada?
WOESER - A religião ainda é perseguida, mas bem menos do que foi durante a Revolução Cultural. Funcionários públicos são desestimulados e até proibidos de orar ou participar de cerimônias religiosas. O mesmo ocorre com estudantes e em alguns locais de trabalho.
FOLHA - Os tibetanos hoje não têm um padrão de vida melhor? A sra. Não acha que muitos poderiam trocar sua identidade cultural e abraçar a identidade chinesa em troca de prosperidade?
WOESER - O governo tenta fazer isso. Após os protestos de março do ano passado, houve aumento de salários para os funcionários públicos no Tibete. Alguns até devem trocar [sua identidade cultural], mas são minoria. A maioria dos tibetanos é pobre hoje, bem pobre. Tudo é mais caro do que no resto da China, pois no alto do Himalaia é preciso importar quase tudo, e se paga por esse transporte. O tibetano foi proibido durante a Revolução Cultural, mas hoje pode-se estudar tibetano ou mandarim. O problema é que, se você não aprender mandarim, não consegue achar emprego.
FOLHA - O dalai-lama pediu aos tibetanos que se rebelassem no ano passado?
WOESER - É mentira dizer que ele estava por trás. Na verdade, os monges começaram um protesto pacífico em 10 de março, que foi violentamente reprimido; eles apanharam, o que só provocou revolta. O quebra-quebra foi espontâneo, contra a repressão. O dalai-lama sempre quis o diálogo, uma via pacífica, mas a raiva se acumulou.
FOLHA - Apesar de bloqueado, seu blog faz muito sucesso. Quem a lê?
WOESER - Recebo dezenas, centenas de comentários, de tibetanos, de chineses que moram no exterior, de tibetanos no exílio. E também de nacionalistas chineses que me atacam. Estes são maioria.
"O tibetano tem menos liberdade do que o chinês comum"
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