terça-feira, 24 de novembro de 2009

As Três Portas da Liberação


As Três Qualidades do Darma são as chaves de que dispomos para abrir as Três Portas da Liberação - o vazio, a ausência de imagens e a ausência de objetivo. Todas as escolas de budismo aceitam o ensinamento das Três Portas da Liberação. Essas três portas às vezes são chamadas de Três Concentrações. Quando passamos por essas portas, adquirimos concentração e nos libertamos do medo, da confusão e da tristeza.

A Primeira Porta da Liberação é o vazio. O vazio sempre significa vazio de alguma coisa. O copo está vazio de água, e a tigela vazia de sopa. Nós estamos vazios de um eu independente e separado. Não podemos existir sozinhos. Só podemos existir em inter-relação com tudo o mais que existe no cosmos. A prática consiste em incentivar a compreensão do vazio durante todo o tempo. Aonde quer que vamos, entramos em contato com o vazio que existe em tudo. Olhamos para a mesa, o céu azul, o nosso amigo, a montanha, o rio, a raiva e a felicidade, entendendo que tudo isso está vazio de um eu independente e separado. Quando contemplamos essas coisas em profundidade, vemos a natureza interpenetrante e interdependente de tudo o que existe. O vazio não significa, em absoluto, não-existência. Significa Origem Interdependente, Impermanência e Não-eu.

Quando ouvimos falar de vazio, ficamos assustados. Mas depois de praticar por algum tempo, entendemos que as coisas realmente existem, só que de forma diferente do que pensávamos. O vazio é o Caminho do Meio entre a existência e a não-existência. A flor não se toma vazia quando murcha e morre, mas sempre foi vazia em sua essência. Ao olharmos em profundidade, vemos que a flor é composta de elementos não-flor - luz, espaço, nuvens, terra e consciência. Está vazia de um eu independente e separado. No Sutra do Diamante, aprendemos que um ser humano não é independente das outras espécies, e que para proteger os seres humanos é preciso proteger as espécies não-humanas. Se poluirmos o ar, a água, os vegetais e os minerais, estaremos destruindo nós mesmos. Temos que aprender a nos enxergar de outra maneira, vendo a nós mesmos naquelas coisas que sempre pensamos que estivessem fora de nós, e dissolvendo nossas falsas fronteiras.

No Vietnã, dizemos que se um cavalo estiver doente, todos os outros cavalos do estábulo recusam comida. Nossa felicidade e sofrimento são a felicidade e o sofrimento de todos. Quando agimos baseados no não-eu, nossa ações passam a estar em consonância com a realidade, e sabemos o que devemos fazer e não fazer. Quando temos consciência de que estamos todos ligados uns aos outros, adquirimos a Consciência do Vazio. A realidade está muito além de nossas idéias sobre ser e não ser. Dizer que uma flor existe não é exatamente correto, mas dizer que ela não existe também não é verdadeiro. O verdadeiro vazio é chamado de "ser maravilhoso", porque está além da existência e da não-existência.

Quando comemos, devemos praticar a Porta da Liberação chamada de vazio. "Eu sou este alimento. Este alimento sou eu." Um dia, no Canadá, quando eu almoçava com a Sangha, um estudante me olhou e disse: "Estou alimentando você." Ele estava praticando a concentração no vazio. Cada vez que olhamos nosso prato de comida, podemos contemplar a natureza impermanente da comida. Esta é uma prática profunda, porque tem o poder de nos ajudar a enxergar a "Origem Interdependente". Aquele que come e a comida ingerida são, por natureza, vazios. É por isso que a comunicação entre eles é perfeita. Quando praticamos a meditação andando de uma forma relaxada e pacífica, acontece a mesma coisa. Cada passo que damos não é dado apenas para nós, mas para o mundo. Quando olhamos para os outros, vemos sua felicidade e sofrimento ligados a nossa felicidade e sofrimento. "A paz começa em mim mesmo."

Todos aqueles que amamos um dia ficarão doentes e morrerão. Sem praticar a meditação no vazio, quando isto acontecer ficaremos arrasados. A Concentração no Vazio é uma forma de permanecer em contato com a vida como ela é, mas precisa ser praticada, e não apenas falada. Observamos nosso corpo e vemos as causas e condições que o fizeram existir - nossos pais, nosso país, o ar, e até mesmo as gerações futuras. Vamos além do tempo e do espaço, do eu e do meu, e experimentamos a verdadeira libertação. Se só estudarmos o vazio como uma filosofia, ele não será para nós uma Porta da Liberação. O vazio só se torna uma Porta da Liberação quando penetramos nele com profundidade, entendendo a natureza interdependente e o aparecimento conjunto de tudo o que existe.


(Do livro “A Essência dos ensinamentos de Buda” – Thich Nhat Hanh)

3 comentários:

Cris Tarcia disse...

Olá, Marcio!

Na palestra Monja Coen falou sobre um pedaço de pano, ali estava a terra, o homem que plantou e cuidou, a semente de algodão, o tear, até chegar no pano que estava ali em suas mãos, o vazio seria então este caminho , ou eu ainda não entendi?

Vou comprar este livro, estou lendo Viva Zen da Monja Coen, conhece?

Um abraço

TK disse...

Muito bom esse texto, me fez entender melhor o que é "o vazio" que tanto falam no Budismo, é simplesmente saber que somos todos interdependentes, somos na verdade vazios do "eu"...adorei.

Marcio Bernardes (Padma Jigme) disse...

Olá Cris e TK. Sim, eu conheço este livro da Monja Coen, uma verdadeira pérola. Acredito que o entendimento sobre a vacuidade deve caminhar sempre. A cada momento podemos aprofundar a compreensão, praticando, estudando, praticando, estudando... na vida e em todos os momentos. Que assim possamos seguir!

Amor e paz!