domingo, 25 de dezembro de 2011

A Paz é o Nosso Estado Original


O mestre budista Dzigar Kongtrul Rinpoche esteve em Salvador em novembro último e concedeu entrevista à Cássia Candra da Revista Muito, do Grupo a Tarde.

Abre aspas com Dzigar Kongtrül Rinpoche

Texto Cássia Candra

Na casa de frente para o mar, exatamente onde o vento “faz a curva”, na Pedra da Sereia, uma escada em espiral leva ao terraço, três pisos acima. Lá, medita Dzigar Kongtrül Rinpoche. No lugar, perfeito para o Jal Samadhi (prática de flutuar na água durante a meditação), o monge indiano de 47 anos fundou o Centro Budista TibetanoGuna Norling(gunanorling.org). De linhagem Nyingma, é o único na América Latina sob sua orientação. Desde 2003, veio à Bahia três vezes e, na última, há pouco mais de 15 dias, iniciou, com estudos do texto clássico Carta a Um Amigo, de Nagarjuna, um novo projeto: a implantação de um Shedra, curso superior de aprofundamento nos ensinamentos do Buda. Nascido em Manali, no Himalaia, e desde 1989 estabelecido nos Estados Unidos, Kongtrül Rinpoche se dedica à pintura e é autor de vários livros. Durante cinco anos ensinou filosofia budista na Universidade de Naropa, no Colorado, e fundou a organização Mangala Sri Bhuti. Estuda a raiz do budismo desde menino, quando foi reconhecido como encarnação de Jamgon Kongtrül Lodro Thaye, mestre tibetano do século 19, e teve como professor o grande iogue erudito Khenpo Rinchen.

Como os principais ensinamentos de Nagarjuna podem ser aplicados em nossa vida prática?

Basicamente, esses ensinamentos de Nagarjuna são correspondências a um amigo muito querido, que é um rei. Pelo fato de serem dados a um rei, os ensinamentos são dados a pessoas não-monásticas. Então, são conselhos de como devemos prosseguir numa vida espiritual, mesmo sem sermos monásticos, mas dentro de um contexto familiar.

Sua Santidade, o Dalai Lama, costuma dizer que ninguém precisa ser religioso para praticar a compaixão.

Com certeza, não. É uma questão de opção, das opções que fazemos. E também da predisposição que trazemos de uma vida anterior. Depende das condições, da fé e das escolhas que fazemos. Mas é muito indicativo para as pessoas que têm uma prática espiritual na vida se autorrefletir. Para tentar compreender quem somos como seres humanos. Ter respeito e interesse pelas pessoas; ter compaixão, tolerância e bom coração, são virtudes básicas para o desenvolvimento de cada um de nós.

Mas, no mundo, não vemos muita compaixão; não vemos pessoas se colocando no lugar das outras. A maioria pratica pouco ou não pratica essas virtudes. O que nos falta para alcançar este desenvolvimento? Qual a visão que o senhor tem da humanidade do século 21?

O Buda disse que, se treinarmos a mente, ela se torna mais aberta; mas, se não for treinada, fica enrijecida. A ciência e a tecnologia deste século – e as necessidades que fizeram com que estas ciências se desenvolvessem – alcançaram um avanço enorme, mas não podemos ignorar nossos hábitos de ganância. Então, há uma necessidade de dispersar esse pensamento egoísta, essa tendência a pensar só em si mesmo, em consumir, em se divertir, para passar a pensar em coisas que alimentam a nossa autointrospecção e o nosso autoconhecimento.

Diria que as pessoas estão perdidas?

Não completamente. Mas, até a humanidade se conscientizar da necessidade de se autorrefletir, o impacto social – os ricos se tornando cada vez mais ricos e os pobres mais pobres – e o impacto ambiental que causamos continuarão tendo efeito. Contudo, a bondade básica que temos como seres humanos irá corrigir esses defeitos.

Que exemplo o senhor daria de “bondade básica”?

O Movimento de Ocupação que está ocorrendo nos Estados Unidos agora. É um movimento enorme, que leva muitos jovens, em sua maioria, a ocupar Wall Street e as maiores cidades do país com o objetivo de protestar contra a desigualdade (lá, a classe média está sendo esmagada pelo 1% da população que tem poder financeiro e de governo). Então, é uma ocupação pacífica, ninguém agride ninguém, mas não deixa de se colocar, de afirmar que tem consciência do que está errado. Esse movimento é um exemplo de que haverá uma correção e é preciso que haja essa correção. A bondade fundamental irá fazer com que a humanidade se dirija a autorreflexão.

Essa é uma das propostas do budismo, incentivar essa atitude?

Que atitude?

Cultivar o que há de bom dentro de nós.

O Buda diz que, com a Lei do Carma, que afirma que tudo o que uma semente possa trazer de efeitos positivos, quando for plantada, assim o fará; mas, se essa semente for negativa, os efeitos serão igualmente negativos. Esses efeitos se referem tanto ao indivíduo como para a comunidade. Então, o indivíduo tem que ter uma atitude positiva, cultivar tolerância e bondade, e dessa maneira adquirir um bem-estar pessoal e impactar a comunidade.

Então, é uma questão de atitude?

De ter atitude e determinação para cultivar e manter esses hábitos.

Muitas filosofias espiritualistas dizem que a paz é nosso estado original. O senhor concorda?

Sim, na verdade a paz é nosso estado original. Porque, se não fosse assim, a iluminação teria que ser criada. Mas ela não é criada, é descoberta. Então, a confusão é como as nuvens no céu e a paz, como o céu limpo.

E por que há tanta violência no mundo?

Acho que violência e ambição andam juntas. E essa ambição se sustenta na crença da existência de si mesmo. Então, a pessoa tem que se proteger. Todos nós temos um ego e todos nós temos que proteger esse ego, mas isso vai além dessa intenção de trocar de lugar com o outro, de nos colocar no lugar do outro. A violência surge disso, da ambição e dessa mentalidade mesquinha.

Surge de um estado mental confuso? Essas pessoas estão confusas, não?

Sim, estão. Mas isso não significa que as nossas intenções não podem ser mudadas; não significa que essa confusão é intrínseca.

Não estaríamos confusos sobre o conceito de felicidade, por exemplo? Todos queremos ser felizes, mas, ao buscar a felicidade, somos capazes de praticar boas ações, mas também de roubar e matar. Lembro de um bandido carioca que contou que entrou no mundo do crime porque sonhava com sua geladeira abarrotada de iogurte.

Sim, entendo o que você quer dizer. Em vez de sermos felizes, não conseguimos dar um suporte às causas e condições que criam essa felicidade. Fazemos o contrário, ao aplicar causas e condições que nos levam ao oposto disso. A intenção não tem o impacto da ação. O que causa sofrimento é essa confusão, quando a ação e a intenção estão separadas.

Como podemos colocar uma boa intenção na ação?

Em vez de ser feliz sozinho (porque isso de ser feliz sozinho é inato, é básico, é um desejo que temos), com a intenção é possível saber o que fazer para ser feliz: é ser bondoso, tolerante; é entender o carma (causa e efeito) do que fazemos. É assim que podemos ser felizes.

E o que nos leva a relativizar o conceito de felicidade?

Educação, as condições de como somos criados, se temos liberdade de fazer o que queremos, interesse pessoal, motivação, são vários fatores que levam a esse tipo de comportamento. O budismo tenta incentivar isso no indivíduo e na comunidade.

Nos últimos anos, o budismo tem alcançado grandes públicos no Ocidente. A que o senhor atribui esta popularidade?

O budismo é a filosofia que encoraja o raciocínio e a análise. Atualmente temos uma população mais educada no mundo. E o raciocínio lógico tem dado esse crédito ao budismo. Essa capacidade de raciocinar com lógica é o que atrai as pessoas. Elas veem a lógica por trás do budismo.

No Brasil, os livros do Dalai Lama, que figuram na lista dos mais vendidos, também demonstram esta popularidade. Como vê seu afastamento da política?

Sua Santidade, o Dalai Lama, ponderou muito a esse respeito e resolveu que cabe dar um passo como esse devido à sua idade e à situação política do Tibete, com a ocupação da China, para o bem do Tibete como nação e uma futura democracia. É a intenção dele. Mas isso também é um assunto muito sentimental para os tibetanos, que consideram essa decisão como uma grande perda para eles. Por outro lado, Sua Santidade sempre estará presente na vida do povo tibetano, como já esteve em numerosas vidas passadas.

Pode falar da experiência como professor na Universidade de Naropa?

Naropa é uma universidade fundada por um grande mestre budista. Lá tem cursos de graduação e pós-graduação em budismo, dança, psicologia, escrita criativa, entre outros. Ensinei no curso de budismo e servi lá ocupando a Cadeira de Sabedoria. Foi uma grande experiência, muito gratificante. O que ensinei em Naropa intenciono ensinar aqui, no Shedra: textos clássicos escritos por professores indianos budistas, na antiga faculdade Nalanda. Todos eles cursos de filosofia budista clássica.

O senhor esteve aqui em 2003 e fundou este centro e volta agora trazendo o Shedra. Por que escolheu Salvador para trazer um programa de educação?

Porque adoro esta cidade. Venho aqui para fazer retiros e agora também para implantar o Shedra. Eu diria que vou unir o útil ao agradável. Esta é minha oferenda. Se as pessoas estão interessadas, é oportuno. Eu amo a Bahia, e, como este lugar é especial para mim, trouxe o Shedra.

O senhor é um artista que fala da necessidade de educar as pessoas. Nos anos 20, o russo Nicholas Roerich (1874-1947) – também artista e educador, que viveu na região onde o senhor nasceu – dizia que a arte unirá a humanidade. O senhor acha que a arte e a cultura têm poder para nos transformar tão profundamente?

Do meu ponto de vista, arte em geral é a alma de uma cultura. Os artistas são inocentes, eles têm frescor e são revolucionários. Eles enxergam o que é preciso para uma mudança e não têm medo de tomar o próximo passo. Sem a arte, o mundo seria sem graça e chato. Imagine o mundo sem a música, a pintura, a dança… Isso, em si, fala da importância do artista e da arte no mundo.

Há uma necessidade de dispersar essa tendência a pensar só em si mesmo, em consumir, para passar a pensar em coisas que alimentam nosso autoconhecimento.

Retirado do blog Bodisatva na sessão de Miguel Berredo

http://bodisatva.com.br/a-paz-e-o-nosso-estado-original/

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